A escassez hídrica no município de Campinas, Brasil (2013-2015), a partir das percepções da população: ¿crise hídrica ou desastre
socialmente construído?

Tathiane Mayumi Anazawa

Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (inpe)
e-mail: tathimay@gmail.com

Roberto Luiz do Carmo

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (ifch),
Universidade Estadual de Campinas (unicamp),
e-mail: roberto@nepo.unicamp.br

Antonio Miguel Vieira Monteiro

Departamento de Processamento de Imagens (dpi), inpe,
e-mail: miguel.monteiro@inpe.br

Recibido: 01 de abril de 2019; aceptado: el 24 de agosto de 2019

Resumo: No Brasil, especificamente na região Sudeste, os baixos índices pluviométricos iniciados em 2013 e que decresceram durante 2014 e 2015 caracterizaram uma estiagem de caráter prolongado, resultando em escassez hídrica, em um desastre socialmente construído. O objetivo deste trablho é analisar as diferentes percepções da população do município de Campinas, e suas relações com diversos fatores, como a veiculação de notícias pela imprensa, a distribuição espacial da população e suas características demográficas. As percepções da população sobre a escassez hídrica no município de Campinas (2013-2015), foram analisadas a partir da aplicação de um survey (N=200 entrevistas), sendo que a maior parte dos entrevistados (56,5% do total), acredita que Campinas vivenciou um desastre no período considerado.

Palavras-chave: população e meio ambiente; desastres, aspectos sociais; falta de água; percepção; survey.

 

LACK OF WATER IN THE MUNICIPALY OF CAMPINAS, BRAZIL
(2013-2015), FROM THE PERCEPTIONS OF THE POPULATION:
¿WATER CRISIS OR DISASTERS SOCIALLY BUILT?

 

Abstract: In Brazil, specifically in the Southeast region, the low rainfall indexes that started in 2013 and decreased during 2014 and 2015, characterized a prolonged drought, resulting in a water scarcity, a socially constructed disaster. The aim of this work is to analyze the different perceptions of the Campinas’s population, and their relations with several factors, such as the news broadcast by the press, the spatial distribution of the population and their demographic characteristics. Population perceptions about the water scarcity in the city of Campinas (2013-2015) were analyzed based on the application of a survey (N=200 interviews), with the majority of respondents (56.5% of the total) believing that Campinas experienced a disaster during the period considered.

Key words: population and environment; disaster, social aspects, water scarcity, perception, survey.

Introdução

No Brasil, especificamente na região Sudeste, os baixos índices pluviométricos iniciados em 2013 e que apresentaram diminuição durante o verão de 2014 e de 2015 (Marengo, Alves, 2015) caracterizaram uma estiagem de caráter prolongado, resultando em uma escassez hídrica, denominada também de “crise hídrica” pelos veículos de comunicação. A situação vivenciada nesta região, no período entre 2013 e 2015, especificamente nas Regiões Metropolitanas de São Paulo e Campinas, é considerada neste trabalho como de escassez hídrica severa, fenômeno que por suas características é apreendido como um desastre socialmente construído.

     Considerando a escassez hídrica frente aos elementos que compõem a dinâmica demográfica, esta pode atingir, em diferentes graus de severidade, as populações com características socioeconômicas e demográficas distintas, localizadas em diversos territórios. O resultado deste processo, construído socialmente ao longo do tempo, é considerado um desastre. Nessa perspectiva, os desastres não são naturais.

     Segundo Romero e Maskrey (1993), há que se diferenciar o fenômeno natural do desastre. O fenômeno natural consiste em toda a manifestação da natureza, podendo ser previsível ou não, podendo provocar um desastre ou não. Já o desastre, que pode ter um fenômeno natural como evento deflagrador, somente se caracteriza como desastre quando ocasiona mudanças na vida da população. Desse modo, explicar os desastres pela abordagem da naturalização de um evento torna-se insuficiente.

     O desastre precisa ser entendido de forma mais abrangente, como um produto de uma combinação das ameaças (o físico) e a vulnerabilidade da sociedade (o social). O que implica na aceitação de que são as condições sociais historicamente constituídas de uma população as que determinam, em grande parte, o nível de destruição ou interrupção da rotina ou da vida das pessoas. Isso significa dizer que as ameaças físicas consistem em um fator necessário na fórmula dos desastres, porém, não se configuram como condição suficiente nem predominante em sua existência (Lavell Thomas, Franco, 1996; Valencio, 2013; 2014).

     Partindo dessa abordagem teórica, a escassez hídrica vivenciada pela Região Metropolitana de Campinas (RMC), especificamente o município de Campinas, entre os anos de 2013 e 2015, pode ser entendida enquanto um desastre socialmente construído. No entanto, a percepção da população deste município corrobora a leitura teórica deste processo? Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é analisar as diferentes percepções da população do município de Campinas, considerando que a percepção da população pode ser influenciada por diversos fatores, como a veiculação de informações, os aspectos relacionados à distribuição espacial da população e suas características demográficas (como idade e sexo). As percepções da população sobre a escassez hídrica no município de Campinas (2013-2015), foram analisadas a partir da aplicação de um survey,[1] no qual foram entrevistadas 200 pessoas das diversas regiões do município, para verificar as percepções sobre o evento ocorrido no município de Campinas, Brasil, entre 2013 e 2015.

A escassez hídrica enquanto um desastre socialmente construído

Para este trabalho, parte-se da leitura do evento ocorrido no município de Campinas (entre 2013 e 2015), como uma escassez hídrica. Ou seja, quando o indivíduo não tem acesso à água para satisfazer suas necessidades, considera-se uma situação de insegurança hídrica. Caso esse quadro se intensifique e um grande número de pessoas em uma determinada área estão inseguras, por um período significativo, determina-se então uma situação de escassez de água (Rijsberman, 2006).

     No entanto, como analisar os cenários de escassez hídrica e como estes podem ser entendidos enquanto um desastre socialmente construído? Parte-se da premissa de que nem todas as manifestações da natureza, como a chuva, o terremoto e a seca, causam necessariamente um desastre “natural”. Este só se configura um desastre “natural” se houver uma correlação com pessoas. Ou seja, quando a população é atingida por esses fenômenos naturais que ocasionam perdas de vidas, de moradias e de outros bens materiais (Romero, Maskrey, 1993).

     Os desastres são amplamente discutidos pela literatura desde o início do século xx, com intensificação das pesquisas sobre o tema após a Segunda Guerra Mundial, conforme apresentado por Dynes e Drabek (1994), e também por Quarantelli e Dynes (1977). As abordagens sobre os desastres são pautadas em diferentes disciplinas e a partir de diferentes escopos teóricos, marcados pela definição de um desastre como evento ou processo. Caracterizar o desastre como tal, evento ou processo, implica reposicionar o próprio conceito de desastre.

     Os desastres considerados a partir da abordagem social apresentam estudos com início na década de 1940 e ganham força e estrutura a partir de 1960.  O pioneiro é Charles Fritz, que introduz o conceito de desastre socialmente construído em 1961. Em seguida, ganha espaço a corrente teórica norte-americana, tendo como um dos representantes expressivos, Enrico Quarantelli, cuja obra “O que é um desastre?” (1998), representa um marco importante para a abordagem social. Esta obra indica que o desastre, a partir da abordagem social, pode ser configurado como um processo, que permite tornar visíveis a estrutura social existente, as injustiças sociais e os diferentes graus de exposição aos perigos (Valencio, 2014). Contudo, essa corrente é marcada por um enfoque próprio da sociologia norte-americana e seus estudos empíricos (Maskrey, 1993). Na América Latina, os estudos sobre a abordagem social dos desastres ganham destaque no final da década de 1980, e são concentrados pela Red de Estudios Sociales en Prevención de Desastres en América Latina (LA RED), formada em 1992.

     Ao discutir a aproximação da abordagem dos desastres e das ciências sociais verifica-se que ao engessar o conceito de desastre como um evento pontual, as causas dos mesmos não são relacionadas (Lavell Thomas, 1993). Dessa forma, o desastre socialmente construído pode ser entendido como:

[...] una ocasión de crisis o stress social, observable en el tiempo y  el espacio, en que sociedades o sus componentes (comunidades, regiones etc.) sufren daños o perdidas físicas  y  alteraciones  en  su  funcionamiento  rutinario.  Tanto  las  causas  como  las consecuencias de los desastres son producto de procesos sociales que existen en el interior de la sociedad (Lavell Thomas, 1993: 120).

A partir da abordagem sociológica dos desastres, destacam-se os estudos realizados no Brasil, especificamente do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED)/UFSCAR. Valencio (2013) enfatiza três aspectos que devem ser considerados no estudo dos desastres sob a abordagem sociológica:

(1) o cerne do desastre é o meio social, o conjunto complexo de sujeitos e forças sociais atuantes; (2) um desastre pode ser descrito como um acontecimento social trágico e pontual sem que, com isso, seja preciso sonegar sua definição como um tipo de crise crônica na esfera social, ou seja, é possível convergir analiticamente situação e processo; por fim, (3) devido às características transescalares dos sujeitos e das relações sociais envolvidas, os desastres podem mesclar situações rotineiras e não-rotineiras (Valencio, 2013: 11).

     Nesse sentido, ao analisar os aspectos propostos por Valencio (2013), acima descritos, afirma-se que cada um desses elementos está presente na escassez hídrica ocorrida de 2013-2015, o que permite descrever esse processo como um desastre socialmente construído.

As percepções sobre a água

Os estudos sobre percepção ambiental, em sua maioria, correspondem a abordagens globais do meio ambiente, não enfocando temas específicos, como a água (Vargas, Paula, 2003). No Brasil, um importante marco referencial buscou pela diminuição da lacuna dos estudos sobre percepção ambiental. Rio e Oliveira (1996), trazem para a discussão trabalhos que utilizam o conceito de percepção como sendo bastante amplo, compreendendo diálogos realizados junto à perspectiva da cognição, dentro da psicologia. Essa coletânea de artigos está dividida em três grupos de análise: os artigos que relacionam a percepção ambiental e projetos urbanísticos, artigos sobre percepção ambiental e a interpretação da realidade (a paisagem, o lugar, o espaço) e além de artigos que sobre percepção e educação ambiental (Rio, Oliveira, 1996).

     Especificando os estudos sobre a percepção ambiental, Vargas e Paula (2003) analisam a percepção social da água. Para os autores, a percepção consiste em:

 

[...] processo psíquico e sociocultural relacionado aos mecanismos de significação. Indica que a mente humana cria significados para cada estímulo que recebe do ambiente externo, independentemente de vontade ou desejo; a mente projeta significados, muitas vezes não condizentes com o real, mas relacionados com a experiência, a imaginação e a memória do indivíduo, socialmente condicionadas por fatores econômicos e culturais (Vargas, Paula, 2003: 128).

     O estudo de Vargas et al. (2002) teve foco na percepção dos usuários urbanos de água de São Carlos e Piracicaba. Já o estudo de Paula (2002) trabalhou com a percepção dos moradores da Região Metropolitana de Campinas. O contexto, de ambos os trabalhos, foi marcado pelas discussões que envolviam a gestão integrada dos recursos hídricos. Como resultado, as pesquisas sugerem que a percepção da população sobre a água ainda é marcada pela falta de conhecimento, tanto sobre a água como elemento natural, como também sobre legislação e preço da água.

     A percepção sobre a água, em suas várias temáticas, surge como linha de pesquisa recente em vários países, destacando os trabalhos de Syme e Williams (1993) e Faulkner et al. (2001) sobre a percepção da qualidade da água, e Syme e Nancarrow (1996) sobre a percepção da água e a sua relação com a gestão desse recurso.

     Syme e Williams (1993) ao analisarem a percepção da qualidade da água potável dos usuários residentes em quatro locais da Austrália, buscaram por quatro medidas: a aceitabilidade da qualidade da água, o julgamento de risco e a qualidade da água, a percepção da qualidade de água da vizinhança e a atitude em relação ao fluoreto como um aditivo à água de beber. Segundo este estudo, os usuários tendem a uma confiança nas instituições que realizam o tratamento e distribuição da água com relação a sua qualidade. Outro destaque para o estudo foram as variáveis demográficas utilizadas na percepção (idade, sexo e local de residência). Segundo Syme e Williams (1993) as questões como a idade do entrevistado, o tempo de residência, a qualidade do bairro e as diferentes experiências relacionadas com o abastecimento de água, a qualidade da água nas cidades vizinhas e o nível socioeconômico, são importantes para a satisfação com a qualidade da água potável fornecida para a população. Nessa linha sobre qualidade de água, o estudo de Faulkner et al. (2001), realizado com os moradores do norte de Londres, abordou a percepção dos moradores quanto as alterações da qualidade da água, incluindo questões como a sensibilização dos moradores em relação o problema, as causas da poluição, e também os efeitos das obras realizadas para melhorar a qualidade da água.

     Já o estudo de Syme e Nancarrow (1996) buscou pelo entendimento da população sobre uma política justa de distribuição de água na Austrália. Frente ao problema de alocação da água na Austrália (preservação, irrigação, consumo), duas respostas foram dadas pelos gestores para essa problemática: a valoração (econômica) da água, muitas vezes disfarçada, e o reconhecimento de que a questão da distribuição da água pode causar um aumento de conflitos entre a abordagem acadêmica e os órgãos gestores. Os autores fizeram uma investigação que considerava as prioridades em distribuição de água, as atitudes relacionadas ao planejamento e buscaram explorar também temáticas como a equidade e ética na distribuição de água no oeste da Austrália.

     Além dos estudos sobre percepção ambiental e percepção específica da água, trabalhos sobre percepção do risco e sua relação com os desastres ganham evidência na temática percepção. Segundo, Renn (2008), para o estudo da percepção do risco, há duas principais abordagens: a realista e a construtivista. A primeira refere-se a percepção e sua proximidade com o risco de forma objetiva, resultando em soluções tecnicistas de fornecer mais informações para a melhor compreensão do risco. Já a abordagem construtivista afirma que o risco não é objetivo, mas sim subjetivo e socialmente construído. Isso significa que as pessoas podem lidar com fenômenos não recorrentes.

     Para especificar e exemplificar a questão da percepção do risco, dois trabalhos são apresentados sobre a percepção da estiagem. Na Espanha, Domènech, Supramaniam e Sauri (2010)[2] trabalharam com a percepção dos moradores da região metropolitana de Barcelona sobre a estiagem aguda ocorrida em 2007-2008, que ameaçou a disponibilidade de água na região. Este trabalho buscou pelo entendimento da população e sua preocupação com a estiagem, a resposta dos moradores à estiagem e as opiniões sobre as medidas que foram promovidas pelo governo durante a estiagem. Já no Brasil, Coelho (2007)[3] analisou a percepção de risco no contexto da estiagem de duas cidades no Nordeste: Queimadas (região de estiagem) e Areias (região sem estiagem), no estado da Paraíba. O principal resultado consistiu em níveis mais altos de percepção da estiagem dos participantes da região sem estiagem, do que da região com estiagem, o que mostra que o perigo tem diferentes significados dependendo da localização da sua residência.

Analisando os estudos específicos sobre a percepção da estiagem descritos acima, observou-se que um único tipo de desastre foi enfocado, mas a partir de perspectivas diferentes, bem como a população, o contexto político e de gestão. A estiagem ocorrida na Espanha (Domènech, Supramaniam e Sauri, 2010) foi apresentada como um evento ocasional em uma dada região metropolitana, relacionando a percepção dos moradores com sua sensibilização às medidas tomadas em relação ao desastre por parte da gestão. Já no estudo de Coelho (2007) é possível observar que a percepção da população pode ser condicionada à frequência de ocorrência de um dado fenômeno, incorporando à sua percepção, o caráter de normalidade de uma situação de desastre.

     Neste contexto, este trabalho situa-se no campo dos estudos sobre a percepção do ambiente, considerando também a relação entre a percepção do risco e sua relação com o desastre. Considerando essa questão mais ampla, parte-se da hipótese de que há diferentes percepções das populações com características sociodemográficas e econômicas diferenciadas. A localização da população de acordo com a distribuição social do risco, que é construída historicamente através do processo de urbanização, transformações demográficas e ambientais, influencia na percepção do risco (Hannigan, 2006). De maneira específica, a percepção da população pode estar relacionada com aspectos demográficos, como a distribuição espacial dessa população, além de sua composição, por idade e sexo.

As percepções da população de Campinas sobre a escassez hídrica

O survey

O survey procura estudar uma amostra de população para entender uma população maior, ou seja, é possível replicar as explicações encontradas para subgrupos diferentes, que fundamenta a ideia de um fenômeno geral na sociedade (Babbie, 1999). Segundo Freitas et al. (2000) o survey procura responder questões como: “o que”, “por que”, “como”, “quanto”, considerando que o objetivo da pesquisa é saber “o que e como” está acontecendo determinado fenômeno.

     Uma das técnicas para compreender a percepção é perguntar às pessoas sobre o que fazem (fizeram) e pensam (pensaram) sobre determinado tema. O survey mostra-se vantajoso por sua qualidade e pelos dados obtidos, uma vez que estes dados são escolhidos dentro do escopo da pesquisa. Além disso, assegura melhor representatividade e permite uma generalização para uma população mais ampla (Günther, 2003).

     Este tipo de pesquisa, o survey, possui três objetivos (Babbie, 1999): 1) Descrição (visa descrever a distribuição de determinadas características na população, assim como descrever subamostras e compará-las, mas sem tentar explicá-las); 2) Explicação (consiste em atribuir explicações para a distribuição das características da população); 3) Exploração (funciona como um “mecanismo de busca” inicial). Um survey pode atingir mais de um dos objetivos citados acima.

     O survey que foi aplicado para este trabalho contou com uma amostra aleatória simples, com 200 entrevistas distribuídas em 40 Unidades Territoriais Básicas (UTB) no município de Campinas. A Unidade Territorial Básica, uma unidade administrativa municipal, consiste em uma divisão territorial composta por porções do espaço urbano com significativo grau de homogeneidade nos padrões de ocupação do solo e de níveis de renda (PMC, 2006). O survey foi realizado entre os meses de agosto e novembro de 2016, buscando pela percepção da crise hídrica ocorrida entre os anos de 2013 e 2015. Por envolver seres humanos, foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Campinas (unicamp), de modo que o projeto intitulado “As percepções sobre a grave escassez hídrica no município de Campinas, entre 2013 e 2015” é identificado pelo Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE), número 54023216.9.0000.5404. Optou-se por utilizar o termo “crise hídrica”, para melhor entendimento dos entrevistados, uma vez que este termo foi muito utilizado pelos veículos de comunicação.

     Por meio de equipe composta de alunos da Pós-Graduação em Demografia (ifch/unicamp), o questionário eletrônico foi aplicado em domicílios previamente sorteados por meio de tablets, através do Sistema SysNEPO. Este questionário era composto por 43 questões fechadas, estruturado em sete seções: 1. Percepção no domicílio; 2. Percepção individual; 3. Informação sobre a falta de água; 4. Escala de preocupação; 5. Percepção da questão hídrica; 6. Percepção dos riscos e perigos; e 7. Dados do entrevistado.

     Para sortear os domicílios a serem entrevistados, utilizou-se o pacote “AmostraBrasil”, no software R, cujo objetivo é gerar amostras aleatórias de determinado local, baseado nos dados do Censo Demográfico 2010, fornecendo uma lista com os pontos amostrados e geocodificados pelo Google Maps. Esta última interface permite 2.500 endereços geocodificados por dia, gratuitos. Dessa forma, foram gerados 2.500 pontos para o município de Campinas, geocodificados. O pacote AmostraBrasil sorteia os 2.500 pontos amostrais de acordo com a lista geral de domicílios do Censo Demográfico 2010, filtrando apenas os domicílios residenciais simples ou coletivos. Sendo assim, para facilitar a execução do survey, os domicílios residenciais sorteados pelo pacote AmostraBrasil, foram localizados nas UTBs do município de Campinas. Das 77 UTBs existentes no município, 60 apresentaram domicílios residenciais, ou seja, passíveis de sorteio para compor a amostra. Deste total de 60 UTBs que apresentaram domicílios residenciais sorteados, foram amostradas apenas 40 UTBs, devido à alguns problemas de ordem logística e de disponibilidade de entrevistadores, frente à demanda inicial, resultando na necessidade de redução da amostra de 420 entrevistas para 200.[4]

     A construção do questionário teve como base os estudos de Paula (2002), Domènech, Supramaniam e Sauri (2010), Iwama (2014) e o questionário sobre percepção do risco do Projeto Enhance (Enhance, 2015).

As diferentes percepções da população

Foram entrevistados 91 homens, que correspondem a 45,5% dos entrevistados, e 109 mulheres (54,5% dos entrevistados). Em relação à idade dos entrevistados, a idade mínima foi de 19 anos, e a idade máxima foi de 85 anos. Verifica-se que há uma concentração de indivíduos nas faixas etárias entre 25 a 29 anos (21 indivíduos), entre 50 a 54 anos (23 indivíduos), entre 55 a 59 anos (25 indivíduos) e entre 70 a 74 anos (20 indivíduos). Os idosos (com 60 anos e mais) somaram 71 indivíduos, o que corresponde a 35,5% do universo amostral de 200 entrevistados.

     Quanto à escolaridade, no conjunto amostral de 200 entrevistas, 74 indivíduos possuem ensino médio completo e superior incompleto, representando 37% do total de entrevistados. Cerca de 24% dos entrevistados têm ensino superior completo, 22% possuem ensino fundamental incompleto e 17% apresentaram ensino fundamental completo e médio incompleto. Apenas um entrevistado não tinha instrução.

     Em relação à renda do domicílio, no conjunto amostral do survey, 28% dos entrevistados apresentaram renda total do domicílio de 3 a 5 salários mínimos, ou seja, na faixa de R$ 2.640,00 a R$ 4.400,00. A segunda faixa de renda total do domicílio mais citada foi a faixa de 5 a 10 salários mínimos (faixa de renda de R$ 4.400,00 a R$ 8.800,00), totalizando 24,5% do total de entrevistados.

     Dado o universo amostral de 200 entrevistas, 103 indivíduos sofreram com falta de água no período de 2013 a 2015, o que significa 51,5% do total de entrevistas. Por sua vez, 97 entrevistados não sofreram com falta de água (representando 48,5% dos entrevistados). Dos 103 indivíduos que sofreram com a falta de água no período entre 2013 e 2015, o maior período que os mesmos ficaram sem água foi de um dia por semana (43,7% dos entrevistados). Contudo, 18,4% dos entrevistados que sofreram com a falta de água, relataram que ficaram sem água por algumas horas (ou períodos) por dias seguidos. A opção ‘outros’ (5,8% dos entrevistados que sofreram com falta de água) foi relatada por entrevistados que afirmaram ficar somente poucas horas por dia, ocasionalmente.

     Parte dos entrevistados que não sofreram com a falta de água apontaram que, apesar de ficarem sem abastecimento de água, não sofreram com a situação por terem possibilidade de buscar outras formas de obtê-la, como através da compra de caixa d’água ou através de caminhões-pipa:

A gente não sentiu a falta de água porque a gente se preparou, comprou caixa d’água (entrevistado 1. Bairro Parque Brasília).

Construí um sistema de captação de chuva e comprei uma caixa d’água (entrevistado 1. Bairro Parque Valença).

Caminhão (pipa) fica mais barato que água de rua (entrevistado 3. Bairro Barão Geraldo).

     As soluções apresentadas por alguns moradores apresentam-se como soluções individuais, representativa da população com melhores condições de renda, que, mesmo em períodos de escassez, passa a ter acesso à água tanto em qualidade como em quantidade mediante pagamento (Fracalanza, Freire, 2015).

     Ainda que a maior parte dos entrevistados (57,3% dos que sofreram com falta de água) relatou que os cortes de água no período da crise hídrica eram precedidos de aviso, sobretudo, através de carro da prefeitura com alto falante, uma grande parcela (cerca de 36% dos entrevistados que sofreram com falta de água) relatou que os cortes eram realizados sem aviso. Os entrevistados que escolheram a opção ‘outros’ (4,9% dos entrevistados que sofreram com falta de água), relataram que os cortes ocorreram das duas formas: com e sem aviso.

     Ao serem questionados sobre os motivos que levaram a falta de água, 47,6% dos entrevistados que sofreram com falta de água afirmaram que o principal motivo era a seca/estiagem que o município estava passando no momento-, como mostra o depoimento do entrevistado abaixo, que indica que os gestores responsabilizavam a seca/estiagem: “A gente ligava na Sanasa,[5] e eles diziam que era por causa da seca” (entrevistado 2. Bairro Jardim Miriam).

     Também se destacam os motivos de ‘rompimento de canos’ e de ‘serviço de manutenção e obras’, que juntos totalizaram 30,1% dos entrevistados. Importante destacar também, que para 16,5% dos entrevistados, os cortes de água eram reflexos de políticas de governo. A opção ‘outros’ (3,9% dos entrevistados que sofreram com falta de água) associa-se a motivos como o desmatamento, fraudes, desperdício das pessoas e fatores agregados.

     Verifica-se que para 70% dos entrevistados que sofreu com falta de água, a crise hídrica consistia em um evento novo no cotidiano, como mostra a fala do entrevistado do bairro Jardim Florence II: “Faz 35 anos que eu moro em Campinas, e nunca vi faltar água” (entrevistado 1. Bairro Jardim Florence II).

     Esse fato pode refletir no conjunto de respostas a esse evento, e até mesmo no que se refere o entendimento do fenômeno como desastre. Apenas 25,2% dos entrevistados que sofreram com falta de água, afirmaram ter sofrido uma situação semelhante à crise hídrica no período entre 2013 e 2015.

     Dos 103 entrevistados que sofreram com falta de água, 57,3% acreditam que houve racionamento de água em Campinas, no período de 2013 a 2015. Já 29 entrevistados (28,2%) acreditam não ter havido racionamento de água no município e apenas 10 entrevistados (9,7%) relataram que acreditam que houve parcialmente um racionamento de água em Campinas. No que conta aos entrevistados que não acreditam que houve um racionamento, mas que reconhecem controle das instituições públicas sobre a situação, observa-se que essa postura possa ser reflexo da comunicação lenta e tardia sobre a real situação hídrica no município: “Houve controle, mas não racionaram” (entrevistado 3. Bairro Jardim Florence II).

     Na percepção de 60,2% dos entrevistados que sofreram com falta de água, embora Campinas não tenha passado por racionamento, a falta de água não ocorreu da mesma forma para todos os bairros, alguns bairros sofreram mais do que outros. No entanto, para 30,1% dos entrevistados que sofreram com a falta de água, não houve racionamento e a falta de água ocorreu da mesma forma para todos os bairros de Campinas. Já para 35,92% dos entrevistados houve racionamento de água em Campinas, mas a falta de água não ocorreu da mesma forma para todos, ou seja, determinada parcela da população sofreu mais com a falta de água do que os demais.

     Deste modo, ao serem questionados sobre a forma de ocorrência da falta de água no município, dois comentários se sobressaíram: o entrevistado do bairro jardim do Lago destaca que a desigualdade de distribuição de água torna-se consequência da escassez hídrica; e o entrevistado no bairro Jardim Miriam acredita que a falta de água se deu da mesma forma para todo o município, mas acredita em uma potencial desigualdade de distribuição de água durante a escassez hídrica, justificando o pensamento ao apontar que seu bairro é vizinho do Condomínio Alphaville, de casas de alto padrão:

Bairro rico não pode faltar água, e para pobre pode. Não acho certo”. (Resposta do entrevistado ao ser questionado se concordava ou não com a afirmação “É justo pagar pela água” (entrevistado 1. Bairro Jardim do Lago).

Para nós nunca falta água, talvez por causa dos ricos. Não falta água para eles, não falta para nós (entrevistado 1, Bairro Jardim Miriam).

     Em termos de qualidade e quantidade de água, comparando a qualidade de água que chegava antes da crise hídrica e após esse período, no domicílio dos entrevistados, 50,5% dos entrevistados que sofreram com falta de água relataram que a qualidade piorou, destacando o gosto, aparência esbranquiçada da água e cheiro forte de cloro. Dos 103 entrevistados que sofreram com a falta de água, 38 entrevistados (36,9%) relataram que a qualidade era a mesma. Quanto à comparação da quantidade de água, 48,5% dos entrevistados que sofreram com falta de água relataram que é a mesma, não percebendo nenhuma mudança. Já 35,9% dos entrevistados indicaram que a quantidade piorou, ou seja, a pressão da água que chegava aos domicílios diminuiu no período de falta de água. Apenas 10,7% dos entrevistados que sofreram com a falta de água, relataram melhoria na quantidade de água que chega ao domicílio. Comparando a questão de qualidade e quantidade, 26,21% dos entrevistados afirmaram que tanto a qualidade quanto a qualidade pioraram em comparação com o período anterior.

     Entre os entrevistados que relataram uma piora na qualidade da água, durante a escassez hídrica, as principais queixas em relação à qualidade da água eram em relação à cor (esbranquiçada devido à grande quantidade de cloro adicionado durante o tratamento, ou de cor marrom, pela falta de tratamento), cheiro e as consequências para a saúde dos mesmos:

Água marrom, com lodo. Colocava roupa branca, saía marrom (entrevistado 4. Bairro Vila Nova).

A gente não bebia da água porque não dava” (entrevistado 1. Bairro Vila Nova).

[...] porque tinha dia que eu tomava água, passava mal e não vinha trabalhar (entrevistado 3. Bairro Jardim Miriam).

     Com relação à percepção individual sobre a crise hídrica, os entrevistados foram questionados sobre seu consumo de água no período entre 2013 e 2014. Entre os 200 entrevistados, 76% relataram que diminuíram seu consumo de água no período entre 2013 e 2015. No entanto, 18,5% dos entrevistados disseram que não diminuíram seu consumo de água, permanecendo o mesmo desde antes da crise hídrica. Esse fato foi relatado, muitas vezes, por pessoas que moram sozinhas. O principal fator que colaborou para a diminuição do consumo foi a questão das notícias de falta de água no estado de São Paulo (41,1% dos entrevistados que diminuíram seu consumo de água), como mostra a Figura 1. Destaca-se que o fator ‘valor da conta de água aumentou’ foi considerado importante para 20,9% dos entrevistados que diminuíram seu consumo de água.  Campanhas realizadas pela Sanasa também impactaram 12,9% dos entrevistados que diminuíram seu consumo de água. A opção ‘outros’ foi relatada pelos entrevistados que citaram outros motivos, como a conscientização, a captação de água de chuva como forma alternativa para diferentes usos e as multas (aplicadas pela Sanasa), como citou o entrevistado do bairro Jardim Miriam: “A Sanasa vinha aqui e dizia que tinha que diminuir consumo. Acabou com as minhas plantas” (entrevistado 3. Bairro Jardim Miriam).

     O valor da conta de água foi motivo para muitos comentários entre os entrevistados que acreditam ser este o motivo para a diminuição do seu consumo.  A  maioria dos comentários apresentou características de indignação

 

Figura 1. Percentual dos motivos de diminuição do consumo nesse período

Fonte: Dados obtidos a partir do trabalho de campo – Projeto “As percepções sobre a grave escassez hídrica no município de Campinas, entre 2013 e 2015” (2016).

 

com a situação vigente, de aumento da conta de água (duas vezes em 2014 e outras duas em 2015 no município de Campinas):

As pessoas sentem quando mexem no bolso delas (entrevistado 2. Bairro Barão Geraldo).

Não adianta economizar, porque chega a conta e fica a mesma coisa (entrevistado 2. Bairro Proença).

Você economiza, mas a conta de água não diminui (entrevistado 5. Bairro Barão Geraldo).

A gente economizava, mas para eles não receberem menos, aumentaram o valor (entrevistado 1. Bairro Vila Nova).

A conta subiu um absurdo, corruptos metendo a mão, eles deveriam estar fazendo alguma coisa (entrevistado 3. Bairro Vila Nova).

Você economiza, aí sai para o centro e vê que os ricos tão só na faxina, torneira aberta (entrevistado 2. Bairro Jardim Miriam).

A Sanasa olha para a casa e cobra pelo tamanho (entrevistado 3 ao ser questionado se concordava ou não com a afirmação ‘É justo pagar pela água’ (entrevistado 1. Bairro Real Parque).

     A percepção generalizada dos entrevistados, tanto de bairros de menor renda (como por exemplo, o Jardim Miriam), quanto de bairros de renda mais elevada (como por exemplo, Barão Geraldo), em relação à incoerência existente entre a diminuição de consumo e o aumento da conta de água, pode ser reflexo das medidas tomadas no momento de escassez hídrica pelos gestores, baseadas na diminuição da demanda urbana. Estas medidas, a curto prazo, imediatistas e focadas na diminuição do consumo da população, por meio de aumentos tarifários, rodízios/racionamentos, aplicação de bônus/multas e campanhas educativas.

     Cita-se como exemplo, o município de Campinas, que teve sua tarifa de água elevada duas vezes em menos de 12 meses (11,98% em fevereiro de 2015 e 15% em agosto de 2015). A Sanasa (Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento, companhia distribuidora de água em Campinas) alegou “revisão extraordinária” para equilíbrio econômico-financeiro (G1 Campinas e Região, 2015). Mas segundo o presidente da Sanasa, Arly de Lara Romêo, o reajuste de tarifas está relacionado ao baixo consumo praticado pela população: "Houve uma redução do consumo, e consequentemente resultou no faturamento da empresa. É a necessidade da empresa manter-se cumprindo com seus compromissos e seus investimentos" (Rossi, 2015). Há que se lembrar que desde o início da crise hídrica, a Sanasa tem apelado ao consumidor para que economize água.

     A questão central deste survey era verificar se a crise hídrica poderia ser considerada um desastre pela população. Sendo que 56,5% dos entrevistados (113 entrevistados) responderam que existiu uma crise hídrica em Campinas, podemos indicar que a percepção da população em relação à existência de uma crise hídrica no município, aliada a outros fatores (posteriormente estudados), pode nos fornecer a resposta sobre o desastre. Cerca de 31% dos entrevistados disseram não ter havido uma crise hídrica em Campinas. A percepção dos entrevistados que afirmaram ter havido uma crise hídrica em Campinas (113 entrevistados), foi que essa situação ainda permanecerá por muitos anos (46,02% dos entrevistados). Outros 22,12% dos entrevistados que afirmaram ter havido uma crise hídrica, disseram que é uma situação permanente, seguido de 12,39% desses entrevistados que acreditam que essa situação vai durar até chover mais. E apenas 8,85% dos entrevistados acredita que essa situação já acabou. Dentre os entrevistados que afirmara ter havido uma crise hídrica, 2,65% (3 entrevistados) optaram pela alternativa ‘outros’, citando que essa situação vai durar até um reservatório ser construído, até a realização de mais obras, até “o governo do Estado de São Paulo ter uma política hídrica decente, inclusiva e que se atente a coisas básicas, como a manutenção de canos e dutos” (Entrevistado 4. Bairro Barão Geraldo).

Os comentários gerados sobre a duração da crise hídrica foram diversos, destacando-se:

Não dá para saber, é a natureza (entrevistado 1. Bairro Proença).

Ainda vive crise hídrica (entrevistado 3. Bairro Jardim Miriam).

Me preocupa mais de seis meses sem chuva (entrevistado 3. Bairro Barão Geraldo).

     A Figura 2 apresenta a análise da escala de Likert relacionada à questão 14, sobre os motivos que contribuem para a situação de falta de água. O gráfico traz três elementos para a análise: 1) os valores à esquerda representam o percentual dos indivíduos que concordam totalmente e parcialmente (somados); 2) os valores ao centro indicam o percentual de indivíduos que nem concordam nem discordam com a afirmação; e 3), os valores à direita correspondem ao percentual dos indivíduos que discordam totalmente e parcialmente (somados). O gráfico apresenta também a ordem das afirmações de acordo com as porcentagens de concordância dos indivíduos. Verifica-se que para os entrevistados que afirmaram ter havido uma crise hídrica no município de Campinas, há maior concordância como motivo da falta de água no município do que discordância, em todos os fatores: perda/vazamento durante a distribuição da Sanasa (Q14.5) com 93% dos entrevistados que concordam com esse fator, seguido dos que acreditam no desperdício das pessoas (Q14.2 - 89% dos entrevistados concordam com esse fator), e dos que concordam com o fator poluição das águas (Q14.6 - 89% dos entrevistados concordam com esse fator). Os fatores seguintes com maior percentual de concordância foram: má gestão da distribuição da água (Q14.7), indústria utiliza muita água (Q14.3), falta de chuvas (Q14.1) e por fim agricultura utiliza muita água (Q14.4).

     Verificou-se que 26,6% dos entrevistados que acreditam existir uma crise hídrica no município, responsabilizam o governo estadual (26,6%), seguido da

 

Figura 2. Análise da escala de Likert: questão 14 [motivos que contribuem para a situação de falta de água].

Onde: Q14.1 [Falta de chuvas]; Q14.2 [Desperdício das pessoas]; Q14.3 [A indústria utiliza muita água]; Q14.4 [A agricultura utiliza muita água]; Q14.5 [Perda/vazamento durante a distribuição da Sanasa]; Q14.6 [Poluição das águas]; e Q14.7 [Má gestão da distribuição da água]. Fonte: Dados obtidos a partir do trabalho de campo – Projeto “As percepções sobre a grave escassez hídrica no município de Campinas, entre 2013 e 2015” (2016).

 

população (20,9%), como sendo os principais responsáveis pela crise hídrica. A justificativa da responsabilidade da população é o desperdício de água das pessoas. Em seguida, a falta de chuva foi citada como principal responsável por 15,8% dos entrevistados que afirmaram ter havido uma crise hídrica, o prefeito do município de Campinas (10,1%), a Sanasa (8,6%) e o governo federal (5%). Na opção ‘outros’ (10,8% dos entrevistados que afirmara ter havido uma crise hídrica) foram citados a agricultura, a Sanasa e o prefeito juntos, e todos os citados juntos. O comentário mais expressivo sobre a desnaturalização do desastre foi do entrevistado do Jardim Miriam, que discorda da falta de chuvas ser a responsável pelo desastre: “Tem jeito de chamar chuva: reflorestando. Não é culpa da falta de chuva. Nossa floresta agora chama asfalto” (entrevistado 1. Bairro Jardim Miriam).

     A população foi a segunda opção mais citada entre os entrevistados, como a responsável pela situação de escassez hídrica. Segundo Paula (2002):

Antes do governo, a população sente que ela própria é a responsável direta pela falta do bem, talvez pela consciência do desperdício praticado e por existir um consenso quanto à possibilidade de economizar água de alguma maneira, o que parece se reforçar pela postura do governo de não assumir falhas (Paula, 2002,
p. 236).

     Além da postura dos gestores de forma geral, de não assumir falhas, ou pela falta de transparência das informações passadas à população, destaca-se o fato, por parte de algumas instâncias da gestão, culpabilizar a população pela escassez hídrica através de medidas imediatistas e punitivas, como as multas aplicadas para quem desperdiça água.

     A opção mais citada, o governo estadual como o principal responsável pela escassez hídrica, não apresentou uma relação direta com as características socioeconômicas e demográficas dos entrevistados. A relação direta que ocorreu foi com a variável fonte de informação sobre a crise hídrica e o sentimento em relação à qualidade das informações. Os entrevistados que acreditam que o governo estadual é o principal responsável, citaram que recorrem à internet como fonte principal de notícias (40,5% dos entrevistados que optaram pelo governo estadual como principal responsável) e se sentem mais ou menos informados (59,5% dos entrevistados que optaram pelo governo estadual como principal responsável). Ter a internet como fonte principal pode indicar alta variabilidade de informações disponíveis, que pode não ocorrer com as demais fontes de informação.

     Segundo Smakhtin e Schipper (2008) a percepção dos desastres tem aumentado por estar parcialmente relacionado com o crescimento do impacto da mídia e dos diversos meios de comunicação, principalmente por trazer informações de maneira rápida, em comparação há várias décadas atrás.

     Com relação à obtenção de informações sobre a crise hídrica, a maior parte dos entrevistados que afirmaram ter havido uma crise hídrica em Campinas, se informava pela televisão (53,2% dos entrevistados), seguido dos entrevistados que se informavam pela internet (23%). Ao serem questionados sobre a qualidade das informações que chegavam até os entrevistados, 41,7% dos entrevistados que afirmaram ter havido uma crise hídrica, alegaram que se sentiam mais ou menos informados. A justificativa, na maior parte dos casos, era que os mesmos não procuraram por mais informações durante a crise hídrica. Cerca de 38% dos entrevistados que afirmaram ter havido uma crise hídrica, sentiam-se bem informado, e apenas 19,4% dos entrevistados se sentiam mal informados.

     Três comentários se destacaram por criticar a falta de informações e até mesmo a falta de transparência por parte dos veículos de comunicação, e também um comentário sobre se sentir bem informada por não querer saber mais sobre o assunto.

Sobre o Cantareira (sobre os volumes de armazenamento do Sistema Cantareira) fala todo dia, mas Campinas não (entrevistado 3. Bairro Jardim Miriam).

Os jornais tomaram posição tardiamente. Por exemplo, a Folha (Jornal Folha de São Paulo), só fez matéria pesada no dia da eleição (em 2014) (entrevistado 3. Bairro Barão Geraldo).

Me sinto bem informada porque não estou procurando por informações, então o que chega até mim, pela televisão é o suficiente (entrevistado 1. Bairro Barão Geraldo).

Considerações finais

Embora a amostra não possa ser compreendida como representativa da percepção do conjunto da população do município, foram encontradas diferentes percepções da população amostrada em Campinas, Brasil, sendo que a maior parte dos entrevistados, que corresponde a 56,5% do total, acredita que vivenciou uma crise hídrica ocorrida em Campinas entre 2013 e 2015, e esta pode ser configurada como desastre, a partir da caracterização do que vem a ser um desastre, de acordo com Valencio (2013): “[...] fenômeno de constatação pública de uma vulnerabilidade na relação do Estado com a sociedade diante o impacto de um fator de ameaça que não se conseguiu, a contento, impedir ou minorar os danos e prejuízos (Valencio, 2013: 5)”.

     No entanto, existe um percentual significante de indivíduos que não acreditam que esta crise ocorrida em Campinas se configurou como desastre entre 2013 e 2015, que corresponde a 43,5% dos entrevistados. Ou seja, estes entrevistados acreditam que estão mais seguros em relação à escassez hídrica, uma vez que não a percebem enquanto desastre. Esse contexto nos leva a questionar os motivos de tal percepção, uma vez que o cenário institucional e da população e seus territórios indicavam uma capacidade de resposta diminuída da população. E não ter a percepção de um desastre pode nos informar que a capacidade de resposta da população pode ter sofrido outras possíveis influências, como por exemplo, a localização da população no município de Campinas.

     Considerando a hipótese deste trabalho, de que há diferentes percepções das populações com características sociodemográficas e econômicas diferenciadas, e que esta percepção pode estar relacionada com aspectos demográficos e com a distribuição espacial dessa população, foi possível verificar que as características socioeconômicas e demográficas apresentaram-se como diferenciais para algumas variáveis analisadas, no entanto, não foram verificadas relações diretas entre a percepção e todas as variáveis sociodemográficas e econômicas que foram analisadas pelo survey. As variáveis número de moradores por domicílio, renda domiciliar e idade (composta pelos grupos etários: jovens, adultos e idosos) apresentaram maior número de relações diretas com algumas variáveis relacionadas à percepção sobre a escassez hídrica, não sendo constatado um padrão sociodemográfico e econômico de influência sobre a percepção. No entanto, foi possível observar que diferentes tipos de veículos de comunicação e a sensação que estas causam nos entrevistados sobre a qualidade de informação, apresentaram influência direta em, por exemplo, a responsabilização do governo do estado de São Paulo pela escassez hídrica ocorrida entre 2013 e 2015, no estado.

     Já a relação entre localização espacial da população e sua percepção, não foi possível afirmar que há padrões definidos referentes a distribuição de percepções no município de Campinas. No entanto, foi possível observar ao analisar determinadas falas dos entrevistados, ao comparar sua situação com seus vizinhos e até mesmo outros municípios e regiões (como por exemplo, a região Nordeste do Brasil, que vivencia uma situação de extrema escassez hídrica), chegaram à conclusão de que sua situação não é tão grave assim, e por isso, não percebem a escassez hídrica vivenciada em Campinas, como um desastre.

     Este trabalho verificou que a percepção da população foi de que houve uma crise hídrica, e esta pode ser caracterizada enquanto um desastre socialmente construído por ter sido um fenômeno de constatação pública de uma vulnerabilidade como proposto por Valencio (2013). Ao questionar a durabilidade da situação existente de escassez hídrica, a culpabilidade desta situação, bem como a ineficiência da gestão dos recursos hídricos em um momento de crise, a população entrevistada apresenta uma percepção que incorpora seu processo histórico social, apesar do conceito naturalizado de desastre ao qual esta população tem acesso, tornando visíveis as injustiças socioambientais existentes e os diferentes graus de exposição desta população aos perigos da escassez hídrica.

Agradecimentos

Agradecimentos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo auxílio financeiro.

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[1] Este trabalho está inserido em uma ampla discussão apresentada na tese de doutorado de Anazawa (2017). A análise geral do survey encontra-se nesta tese.

[2] Pesquisa tipo survey aplicado em 2009, em 36 municípios da Área Metropolitana de Barcelona, com N=437 entrevistados.

[3] Pesquisa com seis questões, aplicada em dois municípios do estado da Paraíba, com N=204 entrevistados.

[4] Para maiores informações sobre a redução amostral, verificar Anazawa (2017).

[5] Sanasa - Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento, companhia distribuidora de água em Campinas.